A Importância do Associativismo na Construção de Comunidades Queer na Academia
Opinião de Ricardo Pestana
O ambiente académico é um de formação profissional e, mais que tudo, pessoal. As universidades e a Academia em geral não são separadas da sociedade em que estão inseridas. Aliás, refletem e reproduzem precisamente os valores, crenças e normas desta. Isto significa que as escolhas feitas pelos académicos (no caso dos docentes e investigadores, as matérias que estudam e as disciplinas que ensinam; e, no caso dos estudantes, o curso em que se inscrevem, a instituição de ensino superior que escolhem e a cidade para a qual vão viver) são fortemente influenciadas pelo ambiente que os rodeia e, então, pela sua visão do mundo e pela visão que o mundo deles tem.

Começo por apontar para a importância do ambiente académico para a formação pessoal, já que me parece ser um argumento recorrente o de que a universidade é um espaço de desenvolvimento de habilidades técnicas, aquisição de conhecimentos sobre uma coisa ou outra e, daí para a frente, pouco mais. Ora, vai-se para a escola aprender coisas de escola e vem-se para casa aprender coisas de casa - a matemática aprende-se na escola e a matéria de ser-se bom cidadão fica ao encargo dos pais. Penso ser uma visão um tanto miópica da realidade. Talvez numa sociedade utópica fosse esse o caso, mas não consigo ver de todo como poderia assim funcionar de forma sustentável na nossa realidade atual, até porque se passamos a maior parte do nosso tempo na faculdade, também o seu impacto no nosso desenvolvimento social e emocional será maior, até porque inerente ao espaço académico estão as relações interpessoais.
Lembro-me de ter sido explorado no debate “Os Desafios do Bem-estar e da Inclusão”, organizado pela Associação Académica da Universidade de Lisboa (AAUL), esta ideia de que se queremos bons investigadores, bons professores e bons profissionais no geral, então da experiência académica é imperativo que surjam bons cidadãos motivados e pessoas de integridade. É essencial que as universidades sejam um meio inclusivo, já que para a aprendizagem de bons valores e competências é necessário um bem-estar mental e esse advém de um processo de inclusão social bem sucedido. No entanto, esta etapa de desenvolvimento pessoal não ocorre de igual forma para todos. Não entrarei, neste artigo, no vasto campo da psicologia do desenvolvimento, porque não me compete, querendo focar-me na experiência queer, já que dessa talvez eu tenha um entendimento mais legítimo, mesmo que seja uma perspetiva inerentemente subjetiva. Note-se que neste artigo, embora existam outras possíveis definições, utilizarei o termo “queer” para me referir a indivíduos que não sejam heterossexuais e/ou cisgénero. Utilizarei ainda os conceitos de cisnormatividade e heteronormatividade enquanto normas sociais que definem a heterossexualidade e a cisgeneridade (quando a identidade de género corresponde ao género atribuído ao nascimento) como sendo o “normal”, assumindo qualquer outra identidade como um desvio, colocando-a numa posição de inferioridade, sujeita a estigmatização e, consequentemente, marginalização.
Pessoas queer, tal como acontece com outros grupos marginalizados e, principalmente, pessoas que existam na interseção de mais que uma comunidade marginalizada (por exemplo, uma mulher lésbica que seja negra e imigrante), enfrentam diversas barreiras no ambiente académico. Estas manifestam-se através de exclusão, pela sua identidade não ser reconhecida, falta de representatividade ou mesmo assédio por parte de colegas ou docentes, que os seus pares talvez não enfrentem. Esta pode ser uma realidade verdadeiramente contrastante com a esperada. Para muitos com uma identidade queer, a entrada no ensino superior coincide com um renascimento identitário pessoal. O finalmente estar longe dos pais e colegas de infância da pequena vila ou aldeia e ir viver para a cidade - um sítio heterogéneo onde a diversidade é, supostamente, normalizada e visível - representa um esforço de distanciamento para com a heteronormatividade e a cisnormatividade. No entanto, quando chegam à faculdade, alguns ainda nem com 18 anos, podem ser confrontados com um sentimento de exclusão ou isolamento, por não se verem a si mesmos nos colegas e/ou docentes à sua volta. Enfatizo a idade dos jovens em questão porque, estando ainda a explorar e desenvolver a sua identidade de género e orientação sexual, encontram-se num estágio crucial de desenvolvimento pessoal e constituem uma população particularmente vulnerável.
A falta de representatividade é um fenómeno perigoso - a ausência ou insuficiência de participação de um grupo ou comunidade em determinada esfera leva a que a pouca representação que haja seja generalizada, o que em nada ajuda o combate ao preconceito, seja ele externo ou interno. Outro problema recorrente é o da procura de habitação, seja porque abertamente se recusam pessoas LGBTQIA+, ou porque o ambiente em si é hostil. Isto leva a uma pressão subentendida de agir de forma mais cisheteronormativa tanto em casa como na faculdade, resultando num sentimento de exaustão de performatividade forçada.
“Se a academia é uma reflexão das pessoas que dela fazem parte, o que é que isto quer dizer quando as pessoas com maior representatividade são um produto de uma sociedade que detém valores opressores? A centralização de problemáticas que concernem a grupos marginalizados continua a ser um desafio para a academia, pois em o fazer estariam a ir contra os valores hegemónicos dos quais ainda se espelham. Tendo isto em mente, pessoas queer são obrigadas a navegar e, potencialmente, produzir literatura num espaço que hereditariamente não zela pelos seus interesses. Esta camada extra de ansiedade é o que faz com que as pessoas em espaços académicos se subjuguem à aproximação comportamental cisheteronormativa.” — Akil Mambuque (Vice-presidente do núcleo Nova Pride Association)
Essas barreiras, aparentes ou não, podem levar à marginalização que, claro está, tem um impacto negativo no desempenho académico e no bem-estar mental. É importante reconhecê-las e trabalhar para criar um ambiente académico mais inclusivo e seguro para as pessoas queer, surgindo aqui o associativismo. Através da organização de forma coletiva, os estudantes podem criar espaços seguros e inclusivos onde é fornecido forte suporte emocional e social, criando-se toda uma rede de apoio. Bem, se o associativismo estudantil per se já é importante a nível do crescimento pessoal, então o associativismo queer ainda mais o será. Para pessoas queer, inicialmente, é muitas vezes o primeiro lugar em que se sentem confortáveis em serem elas próprias e, depois, torna-se um lugar que as ajuda a aprofundar o conhecimento acerca das suas próprias identidades, tal como entender um pouco melhor a história por detrás da comunidade LGBTQIA+.
“Tendo em conta o feedback que me foram dando ao longo dos anos, a existência do OutCiências tornou a vinda para a faculdade (pela primeira vez) um processo menos assustador para algumas pessoas, e que as pessoas se sentiram mais acolhidas e representadas no contexto universitário. Quando vim para a FCUL não existia nenhum núcleo queer ativo em Lisboa e isso deixou-me muito desamparado e não consegui encontrar outras pessoas queer como eu na faculdade. Só quando surgiu a ideia de criar o núcleo, por parte de uma pessoa conhecida, é que finalmente pude conhecer outras pessoas queer na FCUL e percebi que afinal não estava sozinho!” — Duarte Almeida (Presidente do núcleo OutCiências)
Qualquer pessoa queer sabe e sente a importância de ter conexões com outras pessoas com uma experiência semelhante. Como as normas sociais são, por definição, sentidas como mais opressivas por pessoas que não se enquadrem no paradigma social em questão, é essencial para pessoas queer a existência de safe spaces. Enquanto pessoa queer, num espaço em que sabes que a maioria das pessoas que lá se encontram não são da comunidade LGBTQIA+, não vais falar das mesmas coisas nem da mesma maneira nem com o mesmo tom de voz e, definitivamente, não vais exibir maneirismos ou demonstrar afeto de forma que não seja por duas vezes pensada. Perante este fenómeno de auto-vigilância e auto-regulação, penso que muitas vezes há a ideia condescendente de que se não existe nenhum perigo real num espaço, então esse espaço é seguro - se ninguém me gritar nomes homofóbicos ou transfóbicos, então certamente estarei num lugar que me aceita e é seguro e não será necessária toda essa auto-censura. Não é esse o caso, de todo. Começo por dizer que o preconceito não se manifesta apenas enquanto agressões físicas, aliás, o sentimento de toda uma atmosfera opressiva é igualmente destrutivo, até porque o mais comum é mesmo a LGBT-fobia ser encoberta por uma atitude de (aparente) neutralidade. Depois, aponto para o facto de que a segurança não é simplesmente um facto observável, uma coisa que existe ou não existe, é também uma perceção ou, talvez mais que isso, uma sensação. Portanto, a presença de espaços seguros para estudantes LGBTQIA+ no campus universitário ajuda a criar um ambiente acolhedor e favorável para que estes possam ter espaços onde sabem que não se vão deparar com ideais homofóbicos ou transfóbicos. As organizações queer podem fornecer recursos e apoio para os estudantes, bem como promover a conscientização e a compreensão sobre as questões que as pessoas queer enfrentam na academia.
“Ficamos sempre sensibilizados quando recebemos mensagens de pessoas que nos agradecem pois os nossos conteúdos as ajudaram a compreender melhor a sua sexualidade ou identidade de género. Mas também são as pequenas coisas que nos motivam, como tentar ajudar alunes queer a encontrar um quarto/residência onde não sofram de homofobia, ajudar alunes trans a lidar com a parte burocrática da faculdade que vem depois da mudança legal do nome… e também criar eventos sociais e de partilha onde alunes queer se possam sentir seguros e compreendidos nesta família que é a comunidade LGBTQI+” — Ana Margarida (Departamento de Comunicação do núcleo OutCiências)
Digo, ainda, que de facto não são apenas estudantes LGBTQIA+ que abordam os núcleos queer e os seus eventos. Estas organizações são relevantes para pessoas que não estejam dentro de certos assuntos; não é, claro, propriamente recomendado que se aborde uma pessoa trans, por exemplo, com imensas perguntas e dúvidas sobre a experiência trans, mesmo que bem intencionadas, havendo a possibilidade de deixar a pessoa desconfortável, se ela não se ofereceu para o discutir. Assim, estes espaços também se tornam uma boa fonte de informação para pessoas que não sejam queer mas que, claro, tenham dúvidas (e será do nosso maior interesse que as tirem connosco e não com pessoas que em nada entendem do que falam). É importante destacar que a participação no associativismo queer não é apenas para pessoas queer e aponto, ainda, para o quão essencial a interseccionalidade é para qualquer movimento progressista, seja ele de natureza queer, feminista, antirracista, etc… Qualquer pessoa que apoie a causa e defenda a inclusão e a diversidade pode envolver-se e contribuir para a construção de uma comunidade académica mais inclusiva e acolhedora.
Na prática, o associativismo queer na academia pode assumir a forma de um núcleo ou organização estudantil, por exemplo, e é uma ferramenta essencial para promover a inclusão e integração de pessoas queer na academia. Estas ferramentas são fundamentais para garantir que pessoas queer possam encontrar suporte emocional e social na faculdade, e não se sintam excluídas ou isoladas num ambiente académico muitas vezes hostil. Além disso, o associativismo queer na academia ajuda a aumentar a visibilidade e a representação de pessoas LGBTQIA+ na comunidade académica, o que é crucial para romper com a cisheteronormatividade que muitas vezes permeiam toda a dinâmica académica, para que os estudantes se interessem por diferentes cursos e seja claro que são bem-vindos nas diferentes áreas. Como as universidades se encontram intimamente ligadas à sociedade de que fazem parte, são também capazes de provocar mudança na mesma e, por isso mesmo, será do maior interesse de todos que os estudantes universitários tenham um ambiente propício ao seu desenvolvimento. Claro está, para isto, temos de reconhecer que o corpo estudantil não é um grupo homogéneo e, portanto, tomar medidas para atender às diferentes necessidades. Aliás, a meu ver, é essencial que as universidades e faculdades forneçam suporte e recursos para a criação de grupos associativos queer, e que esses grupos sejam valorizados e reconhecidos pela instituição. Só assim poderemos garantir que todas as pessoas LGBTQIA+ tenham acesso a um ambiente académico seguro e inclusivo, onde possam realizar todo o seu potencial académico e pessoal.
Lista de Algumas Organizações Estudantis Queer:
Alguns Recursos Relevantes:
“Guia Sobre Saúde e Leis Trans em Portugal: Recursos e Procedimentos” (Rede Ex Aequo)
“Observatório da Discriminação Contra Pessoas LGBTI+” (para denúncias de discriminação)